segunda-feira, 28 de julho de 2014

Vou sempre ser pequena aos olhos dele...


O meu pai não me viu crescer todos os dias. O meu pai descobriu tarde que eu não brincava com bonecas, que gostava de berlindes e de jogar à bola, e que preferia as roupas do meu irmão às minhas com lacinhos e fitinhas e  flores e folhos pirosos que eu odiava. O meu pai nunca me leu histórias para me adormecer. Mas deu-me tanto mais que as rotinas vulgares. O meu pai ensinou-me a achar que os Creedence Clearwater Revival eram fixes, que a Unchained Melody dos The Righteous Brothers haveria de ser sempre a música mais romântica do mundo dele e partilhou comigo a sua paixão secreta pela Nancy Sinatra. Obrigou-me a aprender a dar passos largos para o conseguir acompanhar a pé até ao café (e na vida). Ensinou-me que a vida tem cores para lá do opaco. Repetiu-me mil vezes que não preciso de maquilhagem para ser bonita. Deu-me liberdade para eu ser quem quisesse ser e ensinou-me a maior e melhor das verdades: o tempo pode ser tanto um amigo como um carrasco. "Nunca voltarás a ser tão jovem e tão bonita como és hoje", disse-me num dia, o único, em que me viu chorar sem ser por ter um joelho esfolado. E a frase, sempre que o dia fica cinzento ou a noite se torna negra, ainda me dá consolo. Obrigada pai. 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

As palavras dos outros que apertam cá dentro

"Se alguém me perguntar, hei-de dizer que sim, que foi
verdade - que não amei ninguém depois de ti nem
o meu corpo procurou nunca mais outro incêndio
que não fosse a memória de um instante junto
do teu corpo; e que deixei de ler quando partiste
por não suportar as palavras maiores longe da tua boca;
e que tranquei os livros na despensa e tranquei a despensa,
acreditando que, se não me alimentasse, acabaria
por sofrer de uma doença menor do que a saudade, mas
a que os outros, pelo menos, não chamariam loucura.
Se alguém me perguntar, direi que foi assim, e não de
outra maneira, como alguns parecem supor - que permiti,
bem sei, que outros homens me amassem e me aquecessem
a cama, mas em troca lhes dei apenas um nome diferente
do que tinham e os vi partir desesperados a meio
da noite sem sentir maior dor que a de saber que, afinal,
também eles não existiam para além de ti; e que no dia
seguinte dava comigo a trautear sem querer essa canção
que amavas (como se ela, sim, se tivesse deitado
no meu ouvido), mas que a sua melodia, em vez
de me alegrar como antes, me escurecia mais a vida.
Se alguém me perguntar, nada desmentirei, nem negarei
que os frutos todos que me deram a provar na tua ausência
me pareceram demasiado azedos ao pé dos que explodiam
em sumo nos teus lábios; e que, por isso, nunca mais quis
um beijo de ninguém, nem sequer inocente, e não voltei
também a aceitar as flores que me traziam por me lembrar
que, em mãos assim, tão grandes para o afecto, o seu
perfume anunciava invariavelmente a chegada do outono.
E contarei por fim, se alguém quiser saber, que o teu silêncio
foi de tal densidade, de tal espessura, que não consegui
escutar nenhuma das vozes que vieram depois de ti e, pior
do que isso, me esqueci com indiferença das mais antigas,
pelo que as minhas noites se tornaram uma tão longa
e solitária travessia que ainda esta manhã acordei ao lado
da tua sombra e respondi baixinho, mesmo sem ninguém
me perguntar, que há coisas que uma mala nunca leva"

Maria do Rosário Pedreira.