Aqui a Pipoca dos Saltos Altos, em tempos, quando era uma gaiata, foi jogadora de futebol. Federei-me
novinha e joguei no campeonato até aos 17 anos, idade com que vim para Lisboa, idade com que entrei na faculdade. Nessa altura, com as lágrimas nos olhos e com uma raiva latente, tive que deixar o futebol.
Nos anos que se seguiram apenas participava nos torneios amigáveis (que nem sempre o eram) de verão do
clubeco lá da terra. Eram, mesmo que a "brincar", momentos em que a
adrenalina disparava, em que era feliz, em que me lembrava das vitórias, das derrotas, dos joelhos
constantemente esfolados, das viagens em equipa, dos gritos, das pessoas a chamarem o meu nome.
Recentemente olhei para a estante do meu quarto, em casa dos meus pais, e percebi que as taças, as medalhas e os troféus de melhor marcadora expostos já não faziam sentido. Guardei tudo num caixote no sótão.
Volta e meia, quando estou na
terrinha e vou a pé ao café do fundo da rua, ainda ouço os velhotes a sussurrar "olha a
Caniggia" quando passo por eles.
Sorriem-me. Nunca percebi porque raio foram escolher o
Caniggia como alcunha para mim. Deve ser do cabelo comprido loiro, e da fita que ele usava para impedir a franja de lhe entrar para os olhos.
Este sábado houve alguém, um perfeito estranho, que me recordou, com muita nostalgia, mas alguma mágoa, esses tempos. Os tempos em que saltos altos tinham atacadores, em que os
vestidinhos eram calções, em que as pernas andavam sempre com crostas. Os tempos em que usar verniz nos pés não era para embelezar, era para esconder a unha negra do pé direito.
Estava eu com os meus pais, no casamento do meu primo (que joga à bola), com os meus amigos (alguns ainda jogam) e a minha melhor amiga de infância (a melhor defesa com quem joguei até hoje) quando um senhor de meia
idade me abordou. O meu pai, manteve-se perto, desconfiado, protector.
Sr - É verdade que você é a Pipoca?
Pipoca -Sim...sou
Sr. - Está a falar a sério? É mesmo você?
Pipoca - Sim, mas porquê?
Sr. - Quero que venha jogar para a minha equipa!
Pipoca - (depois de uma valente gargalhada) - Eu já não tenho idade para isso, já não posso com uma gata pelo rabo.
Sr. - Isso não interessa e não acredito que seja assim...
Pipoca - Acredite, ainda por cima não vivo cá.
Sr. - Ainda um destes dias me disseram que a viram a jogar...
Pipoca - Mas foi uma brincadeira, uma coisa descontraída. Também lhe
devem ter dito que não me aguentei a correr mais que 15 minutos...
Sr. - Para futebol de salão e com a sua idade não é nada mau. Venha lá jogar para a minha equipa, eu faço-lhe a inscrição.
Pipoca - Mas eu quase nunca cá venho, não faz sentido. E estou velha para isso, já não faço o que fazia aos 17 anos.
Sr. - Mas os jogos são ao sábado, nem que só lá aparecesse uma vez por mês, já era muito bom.
Pipoca - Mas isso ajuda-lhe a equipa em quê? Não treino e apareço em campo, do nada, uma
vez por mês?
Sr. - Ainda não percebeu? Eu só queria poder dizer que a tinha na equipa! Imagina a cara dos outros dirigentes dos clubes quando soubessem que a tinha conseguido convencer a voltar aos campos e ainda por cima num clube tão recente como o meu? Era um espectáculo...
Agradeci o elogio (ou não) mas no fundo fiquei triste, revoltada.
Não só por ter envelhecido, nem por já não jogar à bola, fiquei triste porque me senti um troféu velho e enferrujado. Tão velho e enferrujado como os que tirei da estante do meu quarto para um caixote. Então agora vou aparecer equipada uma vez por mês num banco de um campo de futebol para um cromo qualquer poder dizer que ele é que tem a Pipoca, velha e enferrujada , com as cores do clube dele? Não, não vou.
O meu pai percebeu o que eu estava a sentir, aquela tristeza, aquele amargo na boca. Mas não conseguiu esconder o orgulho em mim, nem as saudades dos arrepios no estômago cada vez que me via estendida no chão, a sangrar dos joelhos, vermelha como um tomate, mas cheia de garra, raiva, enérgica.
O meu tempo passou. Fui feliz, fui muito feliz, mas já não faz sentido.
Faria tanto sentido voltar com 26 anos a federar-me em futebol como andar nesta idade com dois tótós no cabelo e uma Barbie na mão. O tempo passa, não o podemos segurar para sempre.
Fico com as memórias, mesmo que dentro de um caixote.