Encontrei-te no fundo de um copo de vodka limão.
Depois de meses segura de que nem existias, meses depois da confiança e do orgulho de que te tinhas ido embora. Meses depois, anos depois, uma década, encontrei-te no fundo de um copo de vodka limão. Fitei-te e logo desviei o olhar. Não era suposto estares ali, à espera de uma oportunidade para me assaltares o olhar, a consciência. No fundo de um copo de vodka? Eu que pensava que estavas empoeirada no fundo de uma gaveta.
Depois de um copo novo, com fundo preenchido, cubos de gelo a mais, uma meia rodela de limão, vi-te espelhada nos olhos dele. Mas como é que foste aí parar? Ignorei-te, tu já não existes, eu matei-te, bem o sei. Já te matei há alguns anos, não tive sequer piedade por ti, nem pelos anos que viveste em mim. Matei-te de um só golpe no dia em que ousei sentir orgulho. Foi um dos dias mais libertadores a que assisti, sem desviar o olhar, desta vez eu à tua procura. Sim, nesse dia estavas no fundo da gaveta.
A música começou a berrar, incomodou-me, afectou-me a àrea de broca, fiquei bloqueada, era o que se chama de afasia temporária. Ninguém deu por conta. Asseguro-te. Ninguém percebeu que te vi no fundo de um copo onde uma vez estiveram vodka, sumo de limão, cubos de gelo e meia rodela de limão.
Bebi o resto da vodka, a segunda, terceira, e olhei para o fundo do copo. Pus-me à prova. Desafiei-me, desafiei-te. Não estavas lá. Ainda bem. Não te quero encontrar no fundo de um copo de vodka com limão, quero saber que estás guardada, empoeirada, inerte, no fundo daquela gaveta.