Sabia que este dia haveria de chegar. Sabia que não te poderia ter por muito mais tempo, não seria sequer justo para ti. Bem sei que até já
me tinha despedido de ti, mas chegado o dia, confesso que não estava minimamente preparada para que me fosses roubado.
Não estava preparada para ver o estado em que a minha mãe ficou.
Não estava preparada para ser eu a avisar o meu irmão.
Não estava preparada para ter que enfrentar a família que quer esconder a tua morte à única mulher que amaste e com quem fizeste questão de renovar os teus votos de amor quando celebraram 50 anos de casados. Eles não percebem que mais dia menos dia ela vai perguntar por ti, naqueles dias em que tem alguns momentos de lucidez. Nesses dias ela pergunta sempre por ti. Como sou a única que acha que ela tem que saber, colocaram-me o peso em cima. Estou aqui às voltas a ensaiar um discurso que ela perceba, que não a magoe. Como é que lhe vou dizer?
Uma destas noites apanhei-a a falar contigo. Mesmo sabendo que não lhe ias responder, ela insistia. Ainda me ri, achei
ternurento. A avó levantou-se a meio da noite e sem sequer
acender a luz debruçou-se sobre ti. "Ó nino, vamos mas é para nossa casa, não devemos estar longe.
Tás a ouvir-me nino? Não tens por aí uma
luzita no bolso? Tá aqui tão escuro."
Estavas naquela cama à demasiado tempo, 8 anos. Ninguém merece, bem sei. E saber que a avó também tem esta maldita doença, e que terá
possivelmente o mesmo futuro ingrato pela frente, custa-me. Custa-me saber que vai começar a perder tudo. As memórias, as caras com nomes, a capacidade motora. O
alzheimer é um ladrão sem hipóteses de ser vencido.
Obrigada por teres tomado tantas vezes conta de mim. Por me teres deixado "conduzir" a
rosita, por teres feito de meu pai quando ele não estava.
Adeus avô.